Minha flor,
Quem deve ser eu e aonde deve estar você? Hoje faz vinte anos que você embarcou. Tanto tempo, eu sei. Acordei com pedaços de letras tuas saltitando na boca e ainda ontem espalhei pelo tapete da sala momentos que passaram por nós; resíduos. Acho meio melancólico quando dito assim e sei que você é avesso a esse saudosismo cafona, a essa melaina cole, como você dizia, soprando a fumaça pra cima e revirando os olhos, seu rayban, tão blasé. Gosto especialmente quando você diz "Palavra que eu sou bom. Ah! Eu sou tão!". A gente tem essa coisa infeliz de filho único. Essa necessidade draconiana de provar pro mundo o quanto a gente vale a pena. Parece uma tentativa frustrada de recuperar o olho materno que não mais voltará porque agora quem nos cuida é o mundo. E você é bom, cherié. Somos. Daí cantei logo de manhãzinha, passando café, antes de sair, bem humilde - você adoraria ver. Fiz todas as mini-tarefas matinais que você nunca compreendeu ou questionou como aquele sabonete especial para a pele oleosa que recém desperta, a faixa azul clarinha que prende os cabelos para que a espuma do sabonete especial não encoste nos cabelos especiais, o alongamento ainda com o estomago vazio para estimular os sete chakras e todo aquele ritual meio bicha demais que te permitia ficar mais duas horas na cama para acordar, belo, always after noon, tomando baldes de café e com a cara melhor que a minha. Comi mamão, granola e mel. Fui até o tapete, recolhi nossos embrulhos, serpentes, migalhas, tragos, bilhetinhos azuis, garranchos, cabelos, pontas de cigarro, raspas, tapas na cara, restos, tantas coisas. Porque ontem andei espalhando cacos nossos por todos os cantos e fui ficando down. Tudo era amor. Levantei. O Rio estava claro demais, com uma bruma envolvendo a estratosfera, cobrindo de leve a inútil paisagem. Faria sol. Fez. Uma onda de calor e insanidade baixavam no ar. Aquele bafo quente, epifânico, que sopra lá daquele canto depois do Arpoador. E me vi, chutando a água, correndo atrás de você, possesso, que tinha me roubado o último cigarro porque não queria que eu fumasse frente aquele paraíso perigoso e porque certamente a gente ia encontrar a Cintia - aquela chata do sol, ascendente e lua em Virgo, pode? - pelo Nove e você tinha que estar fumando porque imagina se ela pensa que você anda saudável, tomando sol pelas manhãs, suco de caixinha sem açúcar e sundown, meu bem? Imagina! E queimou a minha mão pra arrancar o cigarro de mim e amarfanhar no bolso pra depois. Varamos a noite bebendo, rodando de bar em bar e lembro que naquele dia parece que Urano estava entrando em Escorpião - ou alguma coisa assim -, que a Milgris estava explicando antes de você posar de star e quase quebrar o dedo do Caetano, que tinha me abraçado curtamente, sem sufoco. Chafurdamos no Baixo, cem gramas, sem dramas, todas as últimas doses e notas possíveis e queríamos, loucas e saudáveis, caminhar à beira do mar enquanto duelávamos a ponta. Sinto falta do mar. Sinto falta do mar com você. Não gosto de sentir sua falta. Não quero, de forma alguma, que você pense que eu faço a viúva saudosista nem a guerreira. Não choro, nem reclamo abrigo - mentiras sinceras, dirão os irônicos. E quando a saudade enlouquece recorro a um de seus videos - gosto de te ver em movimento. Ai! Por que que a gente é assim, hein? Hoje é quarta. Dia de comer aquela torta de banana com chocolate que você pirava. Não desci, nem comi. Fui ficando meio mal humorado sem muitos motivos nem vontade. Fui me fechando em mim, estava um saco. Ranzinza, ilhado, desprezando Bette Davis. Deu vontade de te beijar, jogar uma rosa branca pra ti no mar - qual é a cor do amor? Arrumei a mala, desci, comprei sete rosas brancas e lembrei daquele teu show, quando o Zeca jogou um copo no palco e você pisou descalço. Antes de sair fui ler e-mails. Parei. A foto de Zeca na página principal, desacreditei. Como é que pode? Vocês dois, aviadores malucos, se trombando nesse trem? Me arrepiei, juro. Puseram aquela foto que você vestia a camiseta branca do Bloco que minha mãe tinha trazido de Recife e ele com aquela camisa roxa que a cachorra tinha comido os botões, lembra? Foi no Canecão, depois do teu show, que você disse que nunca ia deixar ele em paz. Daqui até a eternidade! Vida louca! Decidi passar na banca de flores novamente e comprar mais sete. Amarelas porque Zeca era de Oxum e já tinham as brancas que eram tuas. Queria que elas se misturassem no azul. Que coincidência, meu deus, é o amor! Anjos e fadas existem, eu sei. E seguem estrelas. Que os senhores deuses nos protejam. Não te direi adeus porque a vida é desprevenida e exata. Adeus é tempo demais. Quarta feira. O menino triste quer ser um herói.
R.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
C A R A L H O !
ResponderExcluir